Quadragésimo Quinto Tom

Vira-se a página.

Viras-me mundo do avesso como quem deliberadamente faz do dia noite e vice-versa. Viramos páginas claramente em ritmos diferentes. Somos vitimas do corte do papel. Fino e aguçado. Sangra pouco. Mas o sentir da superfície áspera e seca, friccionando a pele e assim quebrando a fronteira, arrepia-nos. Nessas páginas que umas vezes viramos a correr, outras nem tão pouco, inscrevemos caracteres e símbolos. Por vezes até palavras e sentimentos. Este livro do qual nunca me canso,  virar consecutivamente páginas é um acto de autoconsciência, está cheio de palavras em falta. É isso que é belo nele. Umas vezes ocupo os espaços vazios com paradoxalidades. Outras, o espaço livre é mais importante. Não sei há quantos anos carrego este calhamaço. Já serviu imensos propósitos e inclusivamente já me salvou a vida mais que uma vez. Com ele até uma garrafa de tinto abri. Viro páginas como quem brinca com um baralho de cartas. É um rizoma. Arranjamos sempre novas páginas para novas experiências. Arranjamos também páginas repetidas para situações semelhantes. Escrevemos com as mesmas letras as mesmas palavras. Umas vezes as palavras guiam-nos para encontrar-mos o sentido das coisas. Mas o contrário também se sucede. Vira a página, como quem vira o disco. A incerteza do lado b, não só do livro ou do disco como da vida, é cruelmente fantástica. Deixêmo-nos virar com simplicidade e sem esforço como a leitura exige, para que seja fluida. Estaremos a ficar menos fluentes a virar páginas? A nossa memória muscular raramente nos engana. Sem hesitação, apenas acto reflexivo. Instruímos a mente para ignorar as margens. Cada página é especial e única mesmo sendo na verdade apenas uma cópia. Não menos original. É uma original cópia original. Viras-me com originalidade. Viras-me com simplicidade. Viras-me e eu a ti te viro também. Soubesse eu que o calhamaço carecia de páginas para escrever a tua história, não tina deixado a tinta acabar. Recorro agora a uma já velha companheira, de aparo fino e delicado, para imprimir nestas páginas o que nunca antes foi escrito, talvez nunca antes sentido, e possivelmente mais do mesmo. Até lá vou escrevendo. Viro a página. Viro-me e encontro-te. Viro-te e desapareces. És tão efêmera como as nuvens. A genialidade das nuvens é serem informes e transmudáveis. Viram e reviram-se ao sabor do vento. As páginas onde escrevo assumem muitas vezes estas qualidades. Consigo encaixar perfeitamente numa página todo o universo. Mas falta-me o espaço para descrever porque te amo. Existe a remota possibilidade de a culpa não ser das páginas. Terei eu que a assumir. Viro a página e prossigo divagando sobre o virar de páginas. E depois surge-me na mente a expressão, às páginas tantas. Nunca soube bem o sentido ou a origem de tal particularidade da língua portuguesa mas agrada-me o facto e como soa. Uma vez quis escrever uma coisa séria e profunda numa página carente de estrutura. Como é evidente a mesma não aguentou a torrente de tinta e permitiu dessa forma que o pigmentado liquido deixa-se um registo na página vizinha. Estando essa página reservada para outros eventos, retirei-lhe assim a incerteza de um futuro. Sabia com um elevado grau de certeza que essa mancha informe e aparentemente vazia de significado iria condicionar o que o futuro lhe reservava. Não fora essa a minha intenção. Aliás, a consciência do sucedido ocorreu apenas quando necessitei de fazer usufruto da dita cuja. Tarde de mais. Passei a estar mais atento às condições das páginas e a adequar o elemento riscador à superfície pretendida para uso. Mas por vezes não temos tempo para tal. A urgência de descarregar resíduos da alma é, ou pode ser, de uma outra ordem. Uma ordem que não permite uma observação cuidada do estado do campo de batalha. E se por ventura o desconhecimento do campo de batalha pode ser uma desvantagem e hipotecar o futuro, por outro abre portas à improvisação e ao desenrasque. — Só existe uma razão para virar costas a uma batalha, se o bar se encontrar no sentido oposto. — E é com esse espírito de improvisação e desenrasque que abordaremos o futuro marcado pelo nosso descuido anterior. Artistas há muito que se adaptaram ao acaso, fazendo uso dele na produção de algo mais significativo (digo eu). Virar páginas parece tarefa simples e fácil. E para muitos assim o será. Mas teremos todos a coragem necessária para virar uma página em busca do incerto que é a página seguinte em branco? É certo que é uma incerteza apelativa, pois se está em branco tudo pode acontecer. Viremos páginas. Duas a duas até se for preciso. Ou decidam vocês a cadência certa para o caso, a mim tanto me dá. Virem-se páginas porque sim, e porque não?! Virem-se páginas inteiras ou às metades. Virem-se livros, enciclopédias e dicionários. Virem-se partituras e manuais de instruções. Virem-se num sentido ou no outro. Virem-se panfletos e boletins de propaganda. Virem-se editais e diários da república. Virem-se almanaques e listas para as compras. Virem-se livros de culinária e boletins de aposta. Virem-se teses académicas e listas telefónicas. Haverá sempre uma página por perto a necessitar de ser virada. Haverá sempre quem necessite de ajuda para virar páginas e outros dispostos a ajudar. Caminhamos rapidamente para um mundo sem páginas. (Acredito que os ecologistas, e o planeta, agradecerão.) Mas eu preciso de páginas. Preciso de lhes sentir o cheiro. A textura. Como me virarás tu o sentido caótico do pensamento se destreinares esse gesto? Que farei com os estilhaços da minha alma? Não posso deixa-los por aí a pairar pelo mundo fora, corro o sério de risco de vazar o olho a alguém ou algo pior. Vire-se a página e encontre-se na seguinte, naturalmente em branco, aquilo que quisermos. Projectemos nessas páginas e noutras. Virar a página não é um acto egoísta nem o contrário, pode muito bem sê-lo sem o ser é verdade. Viro esta página para mim, para ti. Viraremos muitas outras. Por vezes com estrondo ou entre o silêncio de olhares melancólicos. O importante é que essa página seja virada. Mais cedo ou mais tarde.

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