Vigésimo Terceiro Tom

Escrevo-me a mim,

Sento-me para escrever sobre a tristeza e sobre a solidão. Mas assola-me uma dificuldade louca, como noutros tempos. Nesses tempos as palavras que se organizavam, um milagre poético, carregavam energias de outra natureza estética. Hoje, mais do que ontem e provavelmente menos que amanhã, estou só. Carrego nas teclas esperando o tal milagre poético-estético, mas de pouco serve, as palavras normais perderam quase todo o seu sentido etimológico e agora são apenas conjuntos de letras. Letras que outrora, e por si só, valiam mais do que eu pensava. Hoje quero dar-lhes valor mas só encontro o silencioso abismo. Tantas vezes desejamos estar sozinhos, mas nunca queremos viver a solidão. Na solidão sentimos o peso do abandono. Do abandono queremos fugir, pois ser abandonado é como morrer. Aquele tipo de morte em que continuamos vivos. O caminho até ao fim desse triste e dançante fado, hoje é comprido amanhã pode ser curto. A vida acaba por ter uma forma muito estranha de se apresentar aos mais talentosos. É preciso referir antemão que uma vida virtuosa nada tem a relacionar-se com a virtuosidade da vida. Viver virtuosamente é viver no fio da navalha, essa mesma navalha bem afiada do barbeiro (assim como a faca do talhante), perante a qual toda a carne é fraca. A consciência desconcertante da perda, por afastamento, como forma de sobrevivência ao caos contemporâneo. Nesse caos onde as palavras e os sons, por tal milagre, são repetidos até à exaustão cacofónica. Isto para não falar nas imagens e nas formas. É nessas passagens temporais  que tento abrir os olhos da mente e em simultâneo fechar os ouvidos. Esse encontro breve com o eu mais intimo e silencioso, que nunca fala, nunca responde, apenas nos confronta sem esforço de qualquer ordem. Sentei-me para escrever sobre a solidão e a tristeza, mas não tenho sucesso. Esse falhanço apresenta-se com uma certa tristeza e uma outra dose de solidão. Mas mesmo sem sucesso continuo. É como procurar o tom certo e o momento preciso para entrar numa determinada estrutura musical, mas quando finalmente o conseguimos reparamos que, mesmo com todos os cálculos mais rigorosos, acertámos ao lado. Esse acertar ao lado, criou um fissura tonal/temporal, que obriga todo o sistema a reorganizar-se. E justamente quando pensamos que nos safamos, encontramo-nos à beira do abismo. Quebra de tenção arterial, suores frios, leve sensação de levitação, secura, perda de visão periférica. Não caímos. Ficamos de pé, assim como as árvores que mesmo depois de morrem de pé ficam. Garanto que não estou morto. Tecnicamente estou vivo e com bom aspecto. Mas a infelicidade decide não zarpar deste porto. Um dia, uma semana, um mês, um ano…o tempo vai passando e o devaneio mental e social atinge velocidades perigosas. O risco e a proximidade do abismo aceleram o ritmo cardíaco. Por vezes até acordamos de um sono bem profundo assim. Naqueles sonhos. Sentado vou escrevendo já não sei bem se sobre a solidão e a tristeza, ou se simplesmente sobre nada e o tudo que isso acaba por representar. São estes tipos de experiência que me aproximam e afastam, paradoxalmente,  do tal abismo para a tristeza e solidão. Talvez preciso de mais tempo para que a saliva que unta estas feridas possa efectivamente fazer algum efeito. Ou, por sua vez, terei de precipitar-me e enfrentar esses mesmos desafios, como um guerreiro que não vê mais do que um palmo à frente do seu nariz (belíssimo refira-se) e que no entanto corre desalmadamente! Não tendo, não encontrando, não sabendo, não podendo, não sendo…mesmo assim, esse vazio que a tristeza apresenta à distância e que a solidão se encarrega de alimentar, serão o fim? Será esse o mistério das vidas virtuosas e talentosas, saber sofrer? Sucumbirei eu, como muitos que me precederam e muitos que me sucederão, a esta tão elementar força?

Paro de escrever, por agora.

Terrassa